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Este ensaio é a história de uma obsessão, a obsessão de Le Corbusier por uma casa de Eileen Gray, mas também a história da minha obsessão por essa história, por essa obsessão. É, assim, uma obsessão por uma obsessão que, no meu caso, remonta, pelo menos, ao Verão de 1992 quando, pela primeira vez escrevi sobre a casa. Há alguns verões, regressei à Fundação Le Corbusier, em Paris, e pesquisei um pouco mais aprofundadamente os seus arquivos. O meu objectivo final será fazer um filme, um documentário. Algumas pessoas podem ter pensado que estava a exagerar na minha leitura desta história. O exagero não me incomoda. Mas aquilo que descobri nos arquivos demonstra que não só não exagerei como não fui suficientemente longe. Entretanto, para aqueles que não estão familiarizados com a história, deixem-me começar pelo princípio.
     E.1027. Uma casa moderna, alcandorada nas rochas, 30 metros acima do mar Mediterrâneo, num lugar remoto, Roquebrune, Cap Martin, em França [Fig. 1]. Um local “inacessível e longe dos olhares”1. Nenhuma estrada leva a esta casa. Foi projectada e construída entre 1926 e 1929 por Eileen Gray, para Jean Badovici e para si própria [Fig. 2]. Gray chamou à Casa E.1027: E de Eileen, 10 da letra J (a décima letra do alfabeto), 2 de B e 7 de G. Gray e Badovici habitaram-na a grande parte dos meses de Verão até Gray construir uma casa para si, em Castellar, em 1934. Após a morte de Badovici, em 1956, a casa foi vendida à arquitecta suíça Marie Louise Schelbert. Esta encontrou as paredes crivadas de buracos de bala. Era óbvio que a casa fora palco de cenas de uma violência considerável. Numa carta de 1969, comentou o estado da casa: “Corbu não quis que nada fosse reparado e insistiu para que eu deixasse tudo como está, como memória da guerra.”2 Mas que guerra? O mais óbvio é que se tratasse da Segunda Guerra Mundial. As marcas das balas eram feridas da ocupação alemã. Mas que violência sofrera a casa antes das balas e antes mesmo da inevitável relação da arquitectura moderna com a esfera militar? E ainda, antes de mais, que fazia ali Le Corbusier? O que o levara àquele lugar isolado, àquela casa remota que acabaria por ser o local da sua própria morte?
    “Na juventude, viajara pelos Balcãs e pelo Próximo Oriente e fizera esboços de lugares e cenas estranhos e inacessíveis. Foi talvez por uma reacção anti-romântica da maturidade que, mais tarde, enquanto purista, se propôs pintar o que era duplicável e se encontrava muito próximo.”3 Temos de recuar às primeiras viagens de Le Corbusier, aos “lugares e cenas estranhos e inacessíveis” que ele conquistara através do desenho [Fig. 3] – ou pelo menos, até à viagem de Le Corbusier a Argel, na Primavera de 1931, o primeiro encontro do que se viria a transformar numa longa relação com esta cidade, ou, nas palavras de Le Corbusier, em “Doze anos de estudo ininterrupto de Argel”.4 De acordo com todos os relatos, este estudo teve início com os desenhos de mulheres argelinas. Le Corbusier afirmou mais tarde que fora “profundamente seduzido por um tipo de mulher particularmente bem constituída”, do qual fez muitos estudos de nu.5 Adquiriu igualmente uma enorme colecção de postais coloridos representando mulheres nuas rodeadas de atavios de bazar oriental. Jean de Maisonseul (futuro director do Musée National des Beaux-Arts d’Alger), que, aos 18 anos, guiou Le Corbusier através do Casbah, recorda a viagem de ambos: “As nossas deambulações pelas ruas secundárias acabaram por nos conduzir à rue Kataroudji, onde [Le Corbusier] ficou fascinado pela beleza de duas jovens, uma espanhola e outra argelina. Estas levaram-nos por uma escada estreita até ao seu quarto; aí, ele fez alguns esboços de nus num – para meu espanto – papel milimétrico de caderno escolar, com lápis de cor; os esquiços da rapariga espanhola deitada sozinha na cama e em belas composições com a argelina resultaram fiéis e realistas; mas ele disse que eram muito maus e recusou-se a mostrá-los.”6 Em Argel, Le Corbusier encheu três cadernos com desenhos que mais tarde afirmou terem sido roubados do seu atelier em Paris. Mas Ozenfant nega-o, afirmando que foi o próprio Le Corbusier quem os destruiu ou escondeu, considerando-os um “secret d’atelier7. Os esboços e postais argelinos dir-se-iam um episódio assaz comum da inveterada apropriação fetichista da mulher, do Oriente, do “outro”. Contudo, como notam Samir Rafi e Stanislaus von Moos, Le Corbusier transformou esse material nos “estudos preparatórios e na base de uma composição monumental da figura humana, cujos estudos parecem ter preocupado Le Corbusier durante muitos anos, se não mesmo toda a sua vida”8.
     Dos meses que se seguiram ao seu regresso da Argélia até à sua morte, Le Corbusier terá feito centenas e centenas de esboços em papel vegetal, colocando-o sobre os esboços originais e redesenhando os contornos das figuras. (Ozenfant acreditava que Le Corbusier redesenhara os seus esboços recorrendo a fotografias ou postais.9) Estudou também exaustivamente o famoso quadro de Delacroix Les femmes d’Alger dans leurs appartement [Fig. 4], produzindo uma série de esboços dos contornos das figuras dessa pintura, despojadas do seu “vestuário exótico” e do “decór oriental”10. Em pouco tempo, os dois projectos fundiram-se: modificou as posturas das figuras de Delacroix, fazendo gradualmente com que estas correspondessem às figuras dos seus próprios desenhos. Le Corbusier disse que chamaria à composição final Les femmes de la Casbah.11 A verdade é que nunca a terminou. Continuou a redesenhá-la. O facto de o desenhar e redesenhar destas imagens se ter tornado a obsessão de uma vida é já indicativo de quanto estava em jogo. Isso tornou-se ainda mais óbvio quando, em 1963-64, pouco tempo antes da sua morte, Le Corbusier, descontente com o envelhecimento visível do papel vegetal, copiou uma selecção de 26 desenhos para papel de esquiço e, sintomaticamente para alguém que guardava tudo, queimou os restantes.12
     Porém, o processo de desenhar e redesenhar Les femmes de la Casbah atingiu o seu momento mais intenso, ou mesmo histérico, quando os estudos de Le Corbusier o conduziram a um mural, que completou em 1938, na Casa E.1027. Le Corbusier referia-se a este mural como Sous les pilotis ou Graffite à Cap Martin; por vezes, também lhe chamava Três mulheres.13 [Fig. 5]. Segundo Schelbert, Le Corbusier “explicara aos amigos que ‘Badou’ [Badovici] estava representado à direita, a sua amiga Eileen Gray à esquerda; o contorno da cabeça e cabeleira da figura sentada ao centro, afirmara, era ‘a criança desejada, que nunca nasceu’”14. Esta cena extraordinária, uma mutilação da arquitectura de Gray, talvez fosse mesmo uma anulação da sua sexualidade. Isto porque Gray era abertamente homossexual, não obstante a sua relação com Badovici. E na medida em que Badovici é aqui representado como uma das três mulheres, o mural pode revelar tanto quanto o que esconde. É claramente um “tema para um psiquiatra”, como em Vers une architecture Le Corbusier chama aos pesadelos com que as pessoas enchem as suas casas15, em especial se tivermos em conta a relação obsessiva de Le Corbusier com esta casa, patente (e este é apenas um exemplo de uma patologia complexa) na sua quase ocupação do local após a Segunda Guerra Mundial, quando construiu para si uma pequena cabana de madeira (o Cabanon) [Fig. 6], na extremidade da propriedade contígua, mesmo atrás da casa de Gray. Le Corbusier ocupou e controlou o lugar, com uma vista privilegiada sobre ele, sendo a cabana pouco mais que uma plataforma de observação, uma espécie de posto de vigia. A imposição deste olhar usurpador torna-se ainda mais brutal se nos lembrarmos que Gray escolhera o local por ser, nas palavras de Peter Adam, “inacessível e longe dos olhares”. Mas a violência desta ocupação ficara já estabelecida quando Le Corbusier pintara os murais da casa (num total de oito) sem autorização de Gray (que já tinha deixado a casa). Gray considerou-o um acto de vandalismo; na realidade, como afirmou Adam, “fora uma violação. Um arquitecto tal como ela, um homem que admirava, mutilara o seu projecto sem o seu consentimento”16.
     A mutilação da casa caminhou de mãos dadas com a anulação de Gray enquanto arquitecta. Quando Le Corbusier publicou os murais na sua Oeuvre complète (1946) e em L’Architecture d’aujourd’hui (1948), a casa de Gray vinha referida como “uma casa em Cap-Martin”; o seu nome não era sequer mencionado.17 Posteriormente, o projecto da casa bem como algum do seu mobiliário chegaram mesmo a ser atribuídos a Le Corbusier.18 Hoje em dia a confusão permanece, havendo muitos autores que atribuem a casa apenas a Badovici ou, quando muito, a Badovici e Gray, enquanto outros sugerem que Le Corbusier colaborou no projecto. O nome de Gray não figura, nem mesmo em nota de rodapé, na maior parte das histórias da arquitectura moderna, incluindo as mais recentes e ostensivamente críticas.
     “Como é estreita a prisão em que me tem encerrado ao longo dos anos, em especial este último ano, com a sua vaidade”, escreveu Badovici a Le Corbusier, em 1949, acerca de todo este episódio (numa carta que Adam julga ter sido ditada pela própria Gray).19 A resposta de Le Corbusier é claramente dirigida a Gray: “Você deseja que eu faça um esclarecimento, coberto da minha autoridade mundial, que demonstre – se bem compreendo os seus pensamentos mais profundos – a ‘qualidade da arquitectura pura e funcional’ por si manifestada na casa de Cap Martin, e destruída pelas minhas intervenções pictóricas. Seja, mas então forneça-me documentos fotográficos dessa manipulação do funcionalismo puro. […] Envie-me também alguma documentação sobre Castellar, esse submarino do funcionalismo; em seguida eu darei a conhecer ao mundo inteiro este debate.”20 Le Corbusier ameaçava agora levar a batalha sobre a casa para os jornais e revistas de arquitectura. Mas a sua posição pública contradizia totalmente o que expressara em privado. Em 1938, no mesmo ano em que viria a pintar o mural Graffite à Cap Martin, Le Corbusier escreveu uma carta a Gray, depois de ter passado alguns dias na Casa E.1027 com Badovici, na qual não só reconhece a autoria da arquitecta, mas também o quanto aprecia a casa: “É com enorme alegria que lhe digo como este punhado de dias que passei na sua casa me fez apreciar o espírito raro que orienta toda a sua organização, no interior e no exterior, e dá ao mobiliário moderno – ao equipamento – uma forma tão digna, tão fascinante, tão cheia de espírito.” 21
     Por que razão terá então Le Corbusier vandalizado uma casa que tanto amava? Terá ele pensado que os murais a engrandeceriam? Certamente que não. Le Corbusier afirmara repetidas vezes que o papel do mural na arquitectura era o de “destruir” a parede, de a desmaterializar. Numa carta dirigida a Vladimir Nekrassov, em 1932, escrevera: “Admito o mural não para valorizar uma parede, mas, pelo contrário, como forma de destruir a parede violentamente, de remover qualquer sentido de estabilidade, peso, etc.”22 Para Le Corbusier, o mural é uma arma contra a arquitectura, uma bomba. “Porquê pintar sobre uma parede […] correndo o risco de matar a arquitectura?” perguntava na mesma carta, respondendo em seguida: “É porque se está a levar a cabo uma outra tarefa, a tarefa de contar histórias.”23 Qual foi então a história que tão urgentemente precisou de contar, com Graffite à Cap Martin?
     Mais uma vez teremos de regressar a Argel. De facto, a carta elogiosa de Le Corbusier a Gray, enviada de Cap Martin em Abril de 1938, ostenta o timbre do Hotel Aletti Alger. A violação perpetrada por Le Corbusier à casa e à identidade de Gray está em sintonia com a sua fetichização das mulheres argelinas. Pode mesmo aventar-se que a criança do mural reconstitui o falo (maternal) ausente, cuja ausência, diz Freud, organiza o fetichismo. Nestes termos, o infindável desenhar e redesenhar é uma substituição violenta que necessita da casa, do espaço doméstico, como sustentáculo. A violência organiza-se em torno ou através da casa. Tanto em Argel como em Cap Martin, a cena tem início com uma intrusão, a ocupação cuidadosamente orquestrada de uma casa. Mas a casa é, no final, suprimida – apagada dos desenhos de Argel, desfigurada em Cap Martin.
     Significativamente, Le Corbusier descreveu o desenho em si como a ocupação da “casa de um estranho”. Na sua última obra, L’atelier de la recherche patiente, escreveu: “Ao trabalharmos com as mãos, ao desenharmos, entramos na casa de um estranho, somos enriquecidos pela experiência, aprendemos.”24 Os esboços das mulheres argelinas não eram apenas o redesenhar de modelos vivos mas também o redesenhar de postais [Fig. 7, 8]. Pode mesmo dizer-se que a interpretação das mulheres argelinas em postais franceses, de grande circulação na época, terá inspirado Le Corbusier ao desenhar as mulheres em Argel.25 Ele “entrou” naquelas imagens. Habitou aqueles postais, aquelas fotografias.
     Na verdade, toda a mentalidade dos desenhos de Femmes de la Casbah é fotográfica. Para além de terem sido feitos a partir de fotografias, foram também desenvolvidos de acordo com um processo repetitivo no qual as imagens são sistematicamente reproduzidas em papel de esquiço, com a grelha do papel milimétrico a permitir que a imagem seja ampliada para qualquer escala. Esta sensibilidade fotográfica torna-se por demais evidente nos murais de Cap Martin. Estes foram entendidos, tradicionalmente, como um paradigma do Le Corbusier pintor, o artífice distanciado da reprodução mecânica, uma interpretação para a qual o próprio Le Corbusier contribuiu através da circulação da famosa fotografia que o mostra nu, trabalhando num dos murais [Fig. 9]. Trata-se da única imagem conhecida de Le Corbusier nu, e o facto de ele se encontrar ali, é revelador. O que é geralmente ignorado é que Graffite à Cap Martin não foi concebido na própria parede. Le Corbusier utilizou um projector eléctrico para ampliar a imagem de um pequeno desenho na parede branca de 2,5 x 4 metros, na qual gravou o mural a preto.
     Diz-se que, ao utilizar o preto, Le Corbusier tinha em mente Guernica, de Picasso, do ano precedente, e que por sua vez Picasso ficou de tal forma impressionado com o mural de Cap Martin que isso o levou a produzir as suas versões de Femmes d’Alger. Supostamente, Picasso desenhou o quadro de Delacroix de memória tendo, mais tarde, ficado “frappé” ao descobrir que a figura que pintara ao centro, deitada, com as pernas cruzadas, não se encontrava no Delacroix.26 Fora, claro está, de Graffite à Cap Martin que ele se recordara, da mulher reclinada de pernas cruzadas (insinuante mas inacessível), a representação sintomática de Gray por Le Corbusier. Mas se o mural de Le Corbusier o impressionara tanto, por que razão decidiu Picasso não ver a suástica gravada no peito da mulher à direita? A suástica poderá muito bem ser mais um sinal do oportunismo político de Le Corbusier. (Não devemos esquecer que o mural foi feito em 1938.) Mas os soldados alemães que ocuparam a casa durante a Segunda Guerra Mundial, talvez também não tenham visto a suástica pois foi esta mesma parede que foi encontrada crivada de balas, como se houvesse sido palco de uma execução.
     O mural era uma fotografia a preto-e-branco. Ao desenhar, entrava na fotografia, ela própria a casa de um estranho, ocupando e reterritorializando o espaço, a cidade, as sexualidades do outro ao retrabalhar a imagem. Desenhar e penetrar a fotografia é o instrumento de colonização. A entrada na casa de um estranho é sempre uma entrada forçada – não há entrada sem ser pela força, por mais que sejam os convites. A arquitectura de Le Corbusier depende de algum modo de técnicas específicas de ocupação e simultânea obliteração gradual do espaço doméstico do outro.
     Como todos os colonizadores, Le Corbusier não via isso como uma invasão mas sim como uma oferta. Ao recapitular a obra de uma vida, cinco anos antes da sua morte, é sintomático que tenha escrito sobre Argel e Cap Martin nos mesmos termos: “A partir de 1930, L-C dedicou doze anos ao estudo ininterrupto de Argel e do seu futuro. […] Sete grandes esquemas (sete enormes estudos) foram preparados sem encargos durante esses anos”; e mais tarde, “1938-9. Oito pinturas murais (sem encargos) na casa de Badovici e Helen Grey, em Cap Martin.”27 Nenhum encargo pela descarga. Gray sentiu-se ultrajada; agora, até o seu nome fora desfigurado. E a alteração do nome é, afinal, o primeiro acto da colonização. Ofertas destas não podem ser restituídas.
     Mas a quem se destinava afinal a oferta? Certamente que não a Eileen Gray. A oferta era para o próprio Le Corbusier. Anular Gray confere a Le Corbusier a sua própria identidade. Isso pode ver-se na sua tentativa obsessiva de guardar a sua oferta.
     Após a morte de Badovici, a posse da casa passou para a sua irmã, uma freira idosa que vivia em Bucareste e fizera seus procuradores os Adventistas americanos que dela cuidavam. Le Corbusier iniciou então uma extraordinária campanha para controlar o destino da casa. Escreveu mais de uma centena de cartas e de notas detalhadas: ao pastor encarregado de vender a casa; a amigos na Suíça (em especial a Boesiger, seu editor, e à galerista Heidi Weber), tentando encontrar um comprador conveniente; a um notário da região de Cap Martin, tentando estabelecer um valor para a casa para contrapor aos 30 milhões pedidos pelo pastor; ao director do SPADEM [Societé de la Propriété Artistique et des Dessins et Modules], solicitando-lhe que escrevesse uma carta ameaçadora ao pastor, avisando-o das intenções de Le Corbusier impor a preservação do mural; à futura compradora da casa, a arquitecta suíça Marie Louise Schelbert, aconselhando-a sobre o que fazer e não fazer, incluindo instruções precisas para usar um chapéu (presumivelmente para fazer licitações no leilão); e por aí em diante. As cartas, algumas com três ou mais páginas de extensão e que incluem desenhos, esboços e fotografias, explicam com pormenores excruciantes o quão extraordinárias são a casa e a sua localização, as casas circundantes, a praia, a outra praia, a estação com ligação a Bordéus, Paris, Frankfurt, Genebra, Génova, Roma, […], cada detalhe do quotidiano local, até à cozinha perfeita do L’Etoile de Mer, o restaurante logo acima da E.1027, as refeições ao Sol na esplanada de Roberto (o proprietário do L’Etoile de Mer) […] O seu tom em crescendo, começa a soar como uma brochura turística.
     Numa carta ao seu editor, Boesiger, enviada de Cap Martin, escreve:
     “Voilà la question, Boesiger, Cap Martin, Roquebrune, no Natal, Ano Novo, Páscoa, Inverno e Verão. É esta parte da costa chamada clima mediterrânico […].
     Acessível por wagons lits, pelas grandes estradas internacionais, por avião.
     Com ligação directa por três vias (mas aqui a tranquilidade do isolamento) a Nice, Antibes, Cannes, Menton (Turim, St. Bernard ou Milão). Aqui visto uma tanga e nada mais durante semanas.
     Boesiger, reproduza esta carta. Mostre-a aos seus amigos. Faça-o sem demora…
     Vou dar um mergulho.”
     Tenta convencer Boesiger a formar um grupo de três ou quatro pessoas de Zurique que pudesse comprar a casa. Ostensivamente, está a tentar salvar os murais a todo o custo, mas, nesse processo, expressa uma e outra vez o seu grande amor pelo local e pela casa.
     Surpreendente é a recorrência de um tema, presente em todas essas cartas: o medo de que a casa possa ser transformada numa casa de má fama, num bordel. É difícil conceber que uma modesta casa moderna junto ao mar, situada numa propriedade cara e rodeada de casas luxuosas pudesse ser transformada num bordel, mas Le Corbusier repete esta ideia de forma obsessiva em numerosas cartas dirigidas às mais diversas pessoas:
     “Se bestas imundas instalarem um bordel nesta casa, destruirão as oito pinturas murais. Se o seu grupo comprar a casa, as pinturas ficarão a salvo”, diz a Boesiger.
     Ao pastor e ao notário afirma em diversas cartas que está a tentar preservar a casa e o jardim para evitar que caia nas mãos de “gens equivoques”, insistindo que, pelo contrário, as pessoas que está a tentar reunir para a comprar representam “uma qualidade irrepreensível, honestidade, compreensão do problema, desejo de preservar este pied-de-terre modesto mas coquete, para passar fins-de-semana ou férias de todo o género”.
     A Duchemin, Secretário-Geral do SPADEM, escreve:
     “É uma dupla ameaça: por um lado, a casa pode ser comprada por gente capaz de a transformar num local de “rendez-vous”, talvez pitoresco! (a localização da propriedade e da própria casa prestam-se a isso) ou comprada por pessoas de gosto – que não conhecemos – e cuja primeira atitude poderá ser tapar as pinturas murais das paredes.”
     Qual é a dupla ameaça? O bordel, precisamente, ele mesmo a cena de sexualidade e feminilidade que Le Corbusier tentara conquistar com os seus infindáveis desenhos. O seu medo é que o bordel ganhe vida como que projectado das imagens na parede. Os murais têm de ser protegidos da possibilidade de serem destruídos, bem como de poderem ganhar vida. Domados, domesticados, controlados. Sugestivos, porém contidos, “modestos mas coquetes”. Aquelas não são apenas velhas imagens numa parede. São o esforço de uma vida para controlar a feminilidade ameaçadora do mundo material, para ser o mestre.


P.S. Em 1944, o Exército Alemão, em retirada, destruiu o apartamento de Gray em Menton, tendo vandalizado a Casa E.1027 e Tempe à Pailla (a sua casa em Castellar). Gray perdeu tudo. Os seus desenhos e projectos foram usados para atear fogos.P.P.S. A 26 de Agosto de 1965, com o infindável redesenhar de Femmes de la Casbah ainda por terminar, Le Corbusier desceu da Casa E.1027 até ao mar e nadou até à morte.

P.P.P.S. Em 1977, um pedreiro local encarregado de algumas obras na casa demoliu “acidentalmente” o mural Graffite.28 Gosto de pensar que o fez de propósito. Gray passara quase três anos a viver na obra em completo isolamento, construindo a casa com os pedreiros, almoçando com eles todos os dias. Fez o mesmo quando construiu a sua casa em Castellar. Os pedreiros conheciam-na bem; na verdade, adoravam-na e detestavam o arrogante Badovici. Compreendiam perfeitamente o que o mural representava. Destruíram-no. Ao fazê-lo, mostraram mais esclarecimento que a maior parte dos críticos e historiadores de arquitectura.

P.P.P.P.S. Desde então o mural foi reconstruído na casa com recurso a fotografias. Reemergiu do seu medium original. A ocupação continua. |

Tradução: João Carvalhais



* O presente texto é uma versão actualizada pela autora do texto War on Architecture. Assemblage. Nº 20 (Apr. 1993). Número especial Violence, Space. Mark Wigley.

1 Peter Adam. Eileen Gray: Architect/Designer. New York : Harry N. Abrams Inc., 1987, p. 174.

2 Carta de Marie Louise Schelbert para Stanislaus von Moos, 14 de Fevereiro, 1969, citada por von Moos. Le Corbusier as Painter. Oppositions. Nº 19-20 (1980), p. 93.

3 James Thrall Soby. Le Corbusier, Muralist. Interiors. (1948), p. 100.

4 Le Corbusier. My Work. Trad. James Palmes. London : The Architectural Press, 1960, p. 50.

5 Samir Rafi. Le Corbusier et “Les Femmes d’Alger”. Revue d’histoire et de civilisation du Maghreb. Argel. (Jan. 1968), p. 51.

6 Carta de Jean de Maisonseul para Samir Rafi, 5 de Janeiro, 1968, citado por Stanislaus von Moos, op. cit., p. 89.

7 De várias conversas de Le Corbusier e Ozenfant com Samir Rafi em 1964. Citado por Samir Rafi, in op. cit., p. 51.

8 Von Moos, op. cit., p. 91.

9 Conversa de Ozenfant com Samir Rafi, 8 de Junho, 1964, citado por Samir Rafi, in op. cit., p. 52.

10
Von Moos, op. cit., p. 93

11 Samir Rafi, op. cit., p. 54-55.

12 Ibid., p. 60.

13
Em My Work, Le Corbusier refere-se ao mural como Graffiti at Cap Martin. Em “Le Corbusier as Painter”, Stanislaus von Moos chama ao mural Três mulheres (Graffite à Cap Martin), e em “Le Corbusier et ‘Les femmes d’Alger’” Samir Rafi chama à composição final de que deriva o mural Assemblage des trois femmes: Composition définitive. Tinta-da-china sobre papel vegetal. 49,7 x 64,4 cm. Col. particular. Milão.

14
Carta de Marie Louise Schelbert para Stanislaus von Moos, 14 de Fevereiro, 1969, citado por von Moos, p. 93.

15
Le Corbusier. Vers une architecture. Paris : Crès, 1923, p. 196. A passagem a que aqui se faz referência não consta da versão da obra em inglês.

16
Peter Adam, op. cit. p. 311.

17
Cf. Peter Adam, p. 334-35. Nenhuma das legendas das fotografias dos murais, publicadas em L’Architecture d’aujourd’hui, faz menção a Eileen Gray. Em publicações posteriores, a casa surge simplesmente descrita como Maison Badovici ou atribuída directamente a Badovici. O primeiro reconhecimento de Gray como arquitecta desde a década de 1930 veio de Joseph Rykwert. Un Ommagio a Eileen Gray: Pioniera del Design. Domus. Nº 468 (Dez. 1966), p. 23-25.

18
Por exemplo, num artigo intitulado “Le Corbusier, Muralist”, publicado em Interiors (June, 1948), lê-se na legenda dos murais de Cap Martin: “Murais, interior e exterior, executados com a técnica de grafite em gesso, numa casa projectada por Le Corbusier e P. Jeanneret, Cap Martin, 1938”. Em 1981 na Casa Vogue. Milan. Nº 119, a casa é descrita como “Firmata Eileen Gray-Le Corbusier” (“assinada por Eileen Gray e Le Corbusier”), e um sofá de Eileen Gray como “pezzo unico di Le Corbusier” (“peça única de Le Corbusier”), como re-ferem Jean Paul Rayon e Brigitte Loye em Eileen Gray architetto 1879-1976. Casabella. Nº 480 (Mag. 1982), p. 38-42.

19 “Quelle réclusion étroite que m’a faite votre vanité depuis quelques années et qu’elle m’a faite plus particulièrement cette année.’’ Carta de Badovici a Le Corbusier, 30 de Dezembro, 1949, Fondation Le Corbusier, citado por Brigitte Loye in Eileen Gray 1879-1976: Architecture Design. Paris : Analeph/J. P. Viguier, 1983, p. 86.

20  “Vous réclamez une mise au point de moi, couverte de mon autorité mondiale, et démontrant – si je comprends le sens profond de votre pensée – ‘la qualité d’architecture fonctionnelle pure’ manifesté par vous dans la maison de Cap Martin et anéantie par mon intervention picturale. D’ac [sic], si vous me fournissez les documents photographiques de cette manipulation fonctionnelle pure: ‘entrez lentement’; ‘pyjamas’; ‘petites choses’; ‘chaussons’; ‘robes’; ‘pardessus et parapluies’; et quelques documents de Castellar, ce sous-marin de la fonctionnalité: Alors je m’efforcerai d’étaler le débat au monde entier.’’ Carta de Le Corbusier a Badovici, Fondation Le Corbusier, citado por Ibid., p. 83-84; Adam, p. 335-36.

21 Carta de Le Corbusier para Eileen Gray, Cap Martin, 28 de Abril, 1938, citado por in Adam, p. 309-10.

22
“J’admets la fresque non pas pour mettre en valeur un mur, mais au contraire comme un moyen pour détruire tumultueusement le mur, lui enlever toute notion de stabilité, de poids, etc.’’ Le Corbusier, le passé à réaction poétique. Paris : Caisse nationale des Monuments historiques et des Sites/Ministère de la Culture et de la Communication, 1988, p. 75. Catálogo de exposição homónima.

23
“Mais pourquoi a-t-on peint les murs des chapelles au risque de tuer l’architecture? C’est qu’on poursuivait une autre tâche, qui était celle de raconter des histoires.’’ Ibid.

24
Le Corbusier. Creation Is a Patient Search. New York : Frederick Praeger, 1960, p. 203.

25
Sobre a circulação de postais franceses de mulheres argelinas entre 1900 e 1930, ver Malek Alloula. The Colonial Harem. Minneapolis : University of Minnesota Press, 1986

26 Samir Rafi, op. cit., p. 61.

27 Le Corbusier. My Work, p. 50-51.

 


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